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Mulheres cientistas e seus desafios   – Portal Institucional – IFSP

Mulheres cientistas e seus desafios  

Conheça a trajetória de duas pesquisadoras do IFSP e as barreiras da profissão 

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11 de fevereiro é o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, foi instituído pela Assembleia das Nações Unidas, em 2015 e lembra a participação feminina na pesquisa e na educação.

Os números de mulheres cientistas vêm crescendo nos últimos anos. No Brasil, de acordo com o CNPq, as mulheres constituem 43,7% das pesquisadoras. No entanto, ainda se veem poucas mulheres nos cargos de liderança, seja na pesquisa ou fora dela. Mulheres e homens encaram grandes desafios no mundo acadêmico, no entanto aquelas enfrentam leões e se equilibram em corda bamba para se manter nesse cenário. O desprestígio ainda atribuído às pesquisadoras e, muitas vezes, a necessidade de se dedicar à vida familiar, papel delegado sobretudo às mães, entre outras demandas, tornam a escalada aos postos mais altos da sociedade uma batalha a ser vencida.  

Nesse 11 de fevereiro, dia em que se comemora o Dia Internacional das Meninas e Mulheres nas Ciências, vamos conhecer a trajetória de duas pesquisadoras do IFSP: Ana Paula Corti, docente do Câmpus São Paulo, e Ana Paula Barros, docente do Câmpus Hortolândia. Corti teve de adiar seu doutorado por quatro anos para trabalhar mais a fim de dar conta das despesas de casa e dos filhos; as dificuldades de equilibrar a carreira, estudo e a vida doméstica também retardaram a carreira de Barros, que se afastou do doutorado por um ano para cuidar de seu filho recém-nascido, Daniel.  

Ana Paula Corti 

Mesmo para as cientistas exitosas, o mundo acadêmico pode não ser necessariamente cordial. Graduada e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo, mestra em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Carlos e doutora em Educação, também pela USP, a professora Ana Paula Corti leciona no IFSP desde 2010, tanto para a educação básica quanto para a graduação e pós-graduação. Seu currículo é extenso, abrange desde a atuação em escola estadual até na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), onde coordenou a pesquisa Escolas Inovadoras, na região metropolitana de São Paulo, bem como a indicação da sua tese de doutorado para o Prêmio Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior).  

Mas, assim como para muitos estudantes, o início do seu percurso acadêmico apresentou muitos desafios, a começar pela estranheza com o novo mundo: “Chegando na USP, muito rapidamente percebi que havia um universo desconhecido por mim, do qual eu não fazia parte e era tudo completamente novo: a possibilidade de desenvolver pesquisa, Iniciação Científica. Quando propus um tema de pesquisa para uma professora de Metodologia, ela respondeu ‘vamos ver’. Na USP havia uma hierarquia muito forte”, relata. A relação entre alunos e professores hoje é diferente, avalia Ana, especialmente no IFSP. “O ambiente é mais amigável, com um diálogo mais horizontal”.  

Desde a graduação, até os dias de hoje, Ana Paula se dedica aos estudos sobre a violência escolar nas escolas estaduais de São Paulo. Nessa perspetiva, uma das experiências que a torna mais realizada profissionalmente é compor a Rede Escola Pública e Universidade (Repu), formada por um grupo de docentes e pesquisadoras de universidades públicas com objetivo de desenvolver estudos, pesquisas e intervenções visando colaborar com o direito à educação de qualidade e socialmente referenciada na rede estadual de ensino.  

Por conseguinte, o resultado desse trabalho é prático. Um dos exemplos foi a ação judicial impetrada pela Rede contra uma decisão do governo estadual, em 2019, de recolher as apostilas de ciências dos estudantes do ensino fundamental que falava em diversidade sexual. A Repu venceu a ação e o governo estadual devolveu as apostilas aos estudantes. No ano passado, a Rede publicou uma nota técnica analisando a reforma do ensino médio, por meio da qual denunciou que alunos estavam sem aulas nos itinerários formativos por falta de professores atribuídos. A informação foi repercutida pela imprensa, o que acarretou na contratação dos docentes.  

 

Ana Paula Barros 

A professora Ana Paula Barros integra o pequeno percentual de mulheres que se dedicam ao estudo das áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática. Formada em Licenciatura em Matemática pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), a docente logo percebeu que “os conhecimentos da graduação não eram suficientes para lidar com todos os desafios que surgiam na escola”, o que a levou a integrar um grupo colaborativo de professores e acadêmicos interessados em investigar a própria prática docente, além de realizar cursos de formação continuada como de especialização e de extensão.   

As experiências profissionais e o olhar analítico para elas, despertaram o interesse da docente pela pesquisa na área do ensino da Matemática. A observação da prática dos estudantes que lançavam mão da tecnologia, como vídeos em plataformas de stream, levaram-na a buscar compreender mais sobre as potencialidades das tecnologias para o ensino da disciplina e, assim, ingressou no Programa Stricto Sensu de Pós-Graduação Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM), na UNICAMP, e, posteriormente, no doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática, na Unesp de Rio Claro, também na área do ensino com tecnologias. 

Barros desenvolve estudos e pesquisas dirigidos à formação não só de futuros professores, mas também de professores em exercício, além de produzir estudos com foco na Educação Inclusiva. Durante o mestrado, ela desenvolveu uma pesquisa que trouxe contribuições sobre ambientes interativos compostos por recursos como softwares matemáticos e vídeos, para o ensino de geometria espacial, evidenciando que ambientes exploratórios e interativos possam colaborar a fim de que estudantes aprendam conteúdos complexos, como os geométricos, com mais autonomia e no próprio ritmo deles.  

No doutorado, a pesquisadora buscou as condições mais próximas da realidade da sala de aula, “busquei compreender práticas culturais de ensinar e aprender (re)constituídas em aulas de Matemática, mediadas pela internet em um ambiente híbrido”. A pesquisa trouxe uma importante discussão sobre a complexidade do ambiente escolar, evidenciando a necessidade de as ações pedagógicas considerarem a característica orgânica desse sistema, para que as reais demandas da diversidade da sala de aula sejam atendidas. 

A investigação destacou que nenhuma tecnologia ou metodologia de ensino deve ser considerada como suficiente, além de diversos desafios tecnológicos em sala de aula que emergem na prática docente ensino. Mostrou também algumas possibilidades de se enfrentar tais desafios, visto que as potencialidades dos ambientes híbridos, constituídos nas duas salas de aulas investigadas, contribuíram para que as demandas dos estudantes fossem atendidas nas ações docentes, bem como também trouxe discussões acerca da (re)constituição de práticas como de planejar uma aula, de avaliar e de investigar, quando a internet se faz presente. 

Ciências Humanas e Sociais 

8° Conferencia Latinoamericana y Caribeña de Ciencias Sociales 2018 Buenos Aires. Apresentacao de trabalho

Quando se fala em Ciência, é comum as pessoas associarem diretamente às Exatas e às Biológicas. Pouco se fala em Ciências Humanas ou Sociais. Porém, elas são responsáveis por grandes análises, propostas e mudanças na nossa sociedade. “Trabalhamos para que esse conhecimento vire políticas públicas, pressionem os governantes a observarem coisas para as quais não se atentariam”. Ana Paula lembra que a Ciência é feita por instituições de fomento, por grupos que disputam recursos, e, nesses espaços, as Ciências Humanas são menos prestigiadas. “Dentro das chamadas ciências duras, está a criação de tecnologias, as quais podem virar mercadorias, produtos e serviços, e chamam mais atenção devido ao seu potencial de mercado”.  

Não obstante, as Ciências Humanas têm ganhado espaço e permitido às pessoas discutirem nas ruas temas até então restritos à academia. “Um exemplo é que uma pessoa com escolaridade média sabe que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. É uma compreensão que veio das Ciências Sociais quando falamos sobre poder, sobre racismo, das relações de gênero e orientação sexual”, considera Corti.  

Ciência, tecnologia, engenharia e matemática (STEM) 

Se na área de estudo de ciências humanas e sociais e da saúde há predominância das mulheres, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), elas representam apenas 35% dos estudantes matriculados nas áreas de ciência, tecnologia, engenharia e matemática – que têm como sigla em inglês STEM; caso considerarmos engenharias de produção, civil e industrial, e tecnologia o número é ainda menor. 

Para Barros, ser uma mulher cientista no Brasil é bastante desafiador, especialmente no campo da Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM), em que é facilmente percetível a predominância masculina, culturalmente estruturada. Hoje há diversas pesquisas que discutem lacunas de gênero nessas áreas e que revelam as contribuições de esforços para mudanças dessa realidade.  

Por exemplo, o grupo Parent in Science, que trata especialmente de questões sobre a maternidade (e paternidade), tem trazido importantes ações que revelam os desafios da mulher mãe na Ciência e promovem grandes conquistas, como a campanha #maternidadenoLattes, que teve como resultado a possibilidade da pesquisadora registrar no currículo da Plataforma Lattes, os períodos de licença- maternidade.  

Apesar desse avanço, ainda são necessários muitos outros, pois, infelizmente, a licença-maternidade muitas vezes é vista como uma interrupção da carreira acadêmica das mulheres, implicando barreiras nos espaços de competitividade e de análise das produções exigidas para o progresso da profissão.   

 

Mulher cientista 

Conferência sobre BNCC Ensino Médio

Já não bastassem os desafios de ser um cientista social no Brasil, ser uma cientista social traz todas as sobrecargas atribuídas às mulheres em uma sociedade machista. Para começo de conversa, as meninas não são incentivadas à carreira acadêmica, enfatiza Ana Paula Corti, que sentiu essa desigualdade na formação sendo construída desde muito cedo. “As meninas são direcionadas a zelar, desde a infância, por meio das brincadeiras, cuidando de bonecas, e isso se junta à condição da classe social, à dificuldade do acesso à educação, à importância dada pela família à educação”. E, mesmo já dentro da Ciência, há um papel distinto reservado às mulheres, observa: “Nas Ciências Humanas, o acesso à mulher é mais permitido do que nas Ciências duras. Vemos muitas mulheres na educação infantil e básica. Já na educação superior, quando a Ciência se torna mais presente do que o cuidar, a situação se inverte e os homens estão mais presentes”. 

Barros acredita que a representatividade feminina é um dos caminhos mais eficazes para que a mulher na Ciência seja mais valorizada e destaca que “essa não deve ser uma preocupação somente das mulheres”. Ela ainda reafirma o papel da escola nesse percurso ao entender como “importante que as escolas promovam espaços para a realização de pesquisas de iniciação científica, com a finalidade de divulgar produções de mulheres na Ciência e para o compartilhamento de experiências, para que meninas em idade escolar entendam que a carreira na Ciência é algo tangível”.  

 

Profissional e mãe 

A pesquisadora Ana Paula Barros e seu filho DanielSe ainda há poucas mulheres em lugares de visibilidade, mesmo sendo a maior parte da população, é porque a falta de incentivo é escancarada. Não se tem conhecimento, por exemplo, de editais que privilegiem mulheres que exerçam a maternidade, cujas atribuições recaem, sobretudo, às mães.  

Ana Paula Corti se casou aos 23 anos, teve a primeira filha aos 25 e o segundo filho aos 29, e lembra como foi difícil conciliar todas as funções que desempenhava. “Engravidei quando estava entrando no mestrado. Eu balançava o berço com uma mão e digitava no computador com outra. Você vai até o fim usando todos os seus recursos psicológicos e físicos. No entanto, quando nos damos conta, vem o sentimento de culpa por não ter passado, nos primeiros anos de vida, tanto tempo com a filha quanto gostaria, em razão de ter de viajar para participar de eventos acadêmicos, de receber a ligação da escola dizendo que sua filha está chorando porque está com saudades. É como se você estivesse sempre se equilibrando sobre um fio, de um lado para o outro. E você é um ser humano limitado”, recorda-se. “Para as mulheres, é um desafio enorme, o qual os homens não vivem. Eles têm muito mais margem para desenvolver a parte profissional, mesmo aqueles que desempenham a paternidade”, completa. 

“Sou mulher preta na Ciência, mãe do Daniel, uma criança com deficiência”

Uma das consequências dessa sobrecarga na vida de Ana Paula foi ter de abandonar o seu doutorado, época em que trabalhava, pesquisava e maternava. Suas atividades não diminuíram, mas hoje os filhos não demandam da pesquisadora assim como quando pequenos, momento em que ela passou por um divórcio. “Quando me separei os recursos financeiros diminuíram e eu tive de sair para trabalhar mais e aumentar a renda. Por outro lado, a minha orientadora exigia que eu me dedicasse mais ao doutorado. Acabei por abandoná-lo e retomá-lo apenas quatro anos depois, quando ingressei no IFSP e tive a oportunidade de me afastar por um ano para me dedicar às pesquisas. Por isso, as políticas institucionais são tão importantes para as mulheres trabalhadoras”, enfatiza.  

“Sou mulher preta na Ciência, mãe do Daniel, uma criança com deficiência”, assim se define Ana Paula Barros que também teve que interromper seus estudos para se dedicar à maternidade. Situação que implicou em diversos aspectos na vida profissional e pessoal, “são muitas as demandas desses dois universos que tenho que conciliar”, conta.  

A maternidade de uma criança especial trouxe um desafio ainda maior para a família de Barros que relata que apesar de o Daniel ser o maior motivo de alegria no lar, ela e o esposo, também professor e pesquisador, enfrentam diariamente o despreparo das estruturas de uma sociedade que caminha para ser inclusiva, mas que em muitos aspectos estruturais ainda é segregacionista.  

A pesquisadora enumera as diversas demandas do seu dia a dia: terapias, saúde e educação, que exigem bastante tempo, portanto, “continuar a investir em minha carreira acadêmica, sendo mulher, é um ato de resistência e que inspira um olhar cuidadoso para as reais condições de progressão profissional que as “Anas Paulas”, mães dos “Danieis”, enfrentam, quando amam ser mães e amam suas profissões, e não entendem, como uma opção, parar de trabalhar para serem mães, e nem deixarem de ser mães para investirem na carreira acadêmica”, conclui.